Em qual idioma você sonha?

Integrando estudos, visões, teorias e reflexões para melhor decifrar as intrigantes histórias que envolvem essa questão

Kátia Brunetti
9 min readJul 25, 2022
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Definição — Sonho (substantivo masculino)

(1) conjunto de imagens que se apresentam durante o sono.

(2) projeto de vida, algo que dá sentido e motivação à sua existência.

Por conta da minha experiência pessoal envolvendo esse tema e inúmeras histórias dos meus alunos ao longo dos anos, iniciei um estudo de caso para poder aprofundar essa questão e buscar respostas sólidas e contundentes que ajudassem a todos a entender a linguagem dos sonhos em relação a funcionalidade do cérebro no aprendizado de idiomas.

O interesse pelo estudo e entendimento desse fenômeno vem dos tempos mais remotos. O registro mais antigo que temos de um sonho foi feito pelo rei sumério Tamuz ou Dumuzi que data o início do Terceiro Período Dinástico (c. 2600–2334 a.C.).

Primeiramente, para podermos compreender o lado científico dos sonhos, precisamos abordá-los em pontos de vista diferentes: neurobiológico, neuropsicológico e conceitos da psicologia experimental, psicanalítica e cognitiva comportamental.

Com a descoberta do sono REM (Rapid Eye Movement, movimento rápido dos olhos, em inglês) pelo médico moldavo Nathaniel Kleitman em 1924, e as subsequentes descobertas psicofisiológicas, o sonho foi levado ao domínio da Biologia. Uma teoria neurobiológica definiu então, os sonhos com a “hipótese da síntese de ativação”, afirmando que eles não significam nada em especial: são apenas impulsos cerebrais elétricos que extraem pensamentos e imagens aleatórios da memória criando uma história. Os sonhos do sono REM são mais longos, vívidos, ricos em detalhes e fantasiosos, o que faz o ser humano acordar pela manhã e lembrar praticamente de tudo o que sonhou.

Para Sigmund Freud, pai da Psicanálise, os sonhos exprimem a satisfação alucinatória de desejos reprimidos. Em 1900, Freud escreveu o seu famoso livro “A Interpretação dos Sonhos”. Foi, justamente, um sonho que ele teve que o inspirou a escrever essa obra na qual ele desenvolve a tese para a interpretação da simbologia dos sonhos e mostra que eles são a melhor maneira de acessar o inconsciente. Para ele, os sonhos são o principal caminho para que se conheça a vida psíquica de um paciente.

Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, foi um dos pioneiros a estudar a teoria de Freud. Porém, acabou construindo sua maneira própria e original de trabalho propondo o método de simbologia aplicada em diferentes contextos. Para ele, do ponto de vista psicanalítico, o sonho transcende o conhecimento neurobiológico, e configura-se como um processo de ativação interna que pode ser aparentemente caótico, mas na verdade, é rico em significados, advindos da história afetiva e emocional da pessoa.

Os estudos mais recentes abordam a compreensão dos sonhos baseada em teorias contemporâneas do comportamento humano. A Psicologia Cognitiva Comportamental busca compreender as percepções que alteram pensamentos, sentimentos e comportamentos. Para Aaron Beck, conhecido como o pai da Terapia Cognitiva Comportamental, os sonhos esclarecem aspectos das vivências acordadas do paciente. Um terapeuta comportamental não considera o sonho como um mero símbolo. Um relato de um sonho pode permitir acesso a fatos da história passada ou atual, servindo como instrumento de coleta de dados para que sua valiosa interpretação chegue às diferentes funções e comportamentos da vida do paciente.

O idioma dos sonhos

Wondering é um projeto desenvolvido pela Universidade de Harvard onde perguntas são respondidas por especialistas da instituição. Deirdre Leigh Barrett, professora de psicologia da Harvard Medical School e autora do livro “The Committee of Sleep”, respondeu segundo suas pesquisas e conhecimento, com qual idioma uma pessoa bilíngue ou multilíngue tem mais probabilidade de sonhar e por quê:

“Existem pouquíssimos estudos sobre bilinguismo e multilinguismo e como eles influenciam os sonhos. São pequenos estudos, mas puderam desvendar que pessoas que falam uma segunda língua, mesmo sem boa proficiência sonham, ocasionalmente nesse outro idioma. Um estudo perguntou aos participantes, na opinião deles, qual o motivo disso acontecer, e a maioria respondeu que o fator determinante eram pessoas com que estavam conversando e cenário que estavam sonhando. Por exemplo, se você sonhar com sua família em seu país de origem, provavelmente o seu sonho será no seu idioma materno. E se você estivesse sonhando com pessoas que conheceu quando viajava ao exterior onde se fala uma língua diferente, você sonharia no idioma daquele local. A combinação de onde o sonho foi ambientado e o idioma é determinante na linguagem do sonho.”

Uma vez, uma aluna brasileira, estudante da língua inglesa me perguntou: “Teacher, por que sou mais fluente em inglês no meu sonho do que no meu trabalho quando preciso conversar com meu chefe britânico?”

O cérebro humano possui quatro áreas conhecidas como lobo frontal, lobo parietal, lobo temporal e lobo occipital. A maioria dos sonhos ocorre durante o sono REM. Isso faz parte do ciclo sono-vigília e é controlado pelo sistema de ativação reticular cujos circuitos vão do tronco cerebral através do tálamo até o córtex. A Neurociência explica que o córtex pré-frontal é responsável pelas verificações da realidade. É a área do cérebro que controla processos cognitivos conscientes e desempenha um papel importante na capacidade de autorreflexão. Na vida real, sua mente consciente controla o idioma e você tem a consciência com quem você está falando e o que a pessoa pode pensar de você. Nos sonhos, fatores inibitórios, como a autocritica e o autojulgamento, estão ausentes, fazendo possível que você seja proficiente de uma maneira mais natural.

A linguagem e o cérebro

Para que possamos nos aprofundar em relação a linguagem e o cérebro, precisamos, primeiramente, entender como o cérebro aprende. Após muita pesquisa sobre as complexas relações entre linguagem, cérebro e comportamento, escolhi para enriquecer este texto, a que chamo de mais completa e elucidativa: a Neurociência Cognitiva. No vídeo abaixo, Steven Pinker, renomado linguista e professor de psicologia de Harvard, discute a linguística como uma janela para entender o cérebro humano.

Steven Pinker: Linguistics as a Window to Understanding the Brain | Big Think

Você provavelmente deve ter ouvido pessoas falarem sobre o momento em que começaram a sonhar em uma língua estrangeira. Muitas vezes, para a área educação, isso é considerado um sinal de fluência. Em uma pesquisa no site Quora, busquei a pergunta: “Em qual idioma você sonha?” e encontrei respostas interessantíssimas, tais como:

“Tendo a capacidade de falar e entender quatro idiomas, recordo ter sonhos regularmente em todos os quatro.”

“Depende das pessoas que estão ao meu redor. Eu sempre sonho na minha língua materna. Assim que comecei a viajar pelo mundo, comecei a sonhar no idioma do local que eu estava visitando.”

“Eu sei falar três idiomas, mas meus sonhos são tecnicamente em nenhum deles. Não me recordo qual idioma os personagens dos meus sonhos falam, mas sei que posso entendê-los perfeitamente.”

Na década de 1980, o psicólogo canadense Joseph De Koninck observou que seus alunos de francês como segunda língua, que comentavam sonhar no idioma que estavam aprendendo, progrediam mais rápido do que outros alunos. Começou então uma investigação com psicólogos e neurocientistas para tentar entender a ligação entre sonhar e aprender idiomas.

No livro “Dreaming in Chinese”, a autora Deborah Fallows afirma que a fluência do sonho é uma metáfora para se tornar um insider. Outro livro, “Dreaming in Hindi”, de Katherine Russell Rich, segue uma narrativa semelhante sobre o caminho linguístico para se familiarizar num país estrangeiro.

Um estudo analisou 24 pessoas com distúrbio comportamental do sono REM, uma condição que faz com que as pessoas ao sonhar, andem, falem e às vezes agem violentamente sem acordar. A maioria das pessoas analisadas, falava fluentemente em seus idiomas nativos, usando o mesmo tom de voz e gestos que usavam quando acordados. “Quando sonham, essas pessoas falam com uma ou várias pessoas, deixam um silêncio apropriado como se estivessem ouvindo uma resposta de seu interlocutor fictício”, escreveram os pesquisadores. Uma das pesquisadoras, Isabelle Arnulf, neurologista do centro de distúrbios do sono do Hospital Pitié-Salpêtrière, em Paris disse que seus pacientes usam principalmente a língua nativa durante o sono, embora alguns usem uma língua aprendida. Essa exceção foi um carpinteiro espanhol aposentado que morava na França há 60 anos e falava dormindo, principalmente em francês. Apenas uma vez ele usou o espanhol, para contar o tempo (uno, dos, tres) ao sonhar que estava dançando.

A mente subconsciente é capaz de coisas incríveis. Há casos como o de um paciente americano que esteve em coma, ter esquecido sua língua nativa e acordou anos depois falando fluentemente alemão, idioma que nunca havia tido contato anteriormente. Como explicar isso?

Somos uma matéria de que são feitos os sonhos, e nossa pequena vida se completa com um sono. William Shakespeare — A Tempestade

Os cientistas têm se esforçado muito através de suas pesquisas e estudos para explicar os fenômenos que envolvem os sonhos. Porém, algumas respostas também podem ser encontradas além da Ciência.

Os sonhos desempenham importantes funções específicas, culturalmente falando: para os xamãs, por exemplo, os sonhos são analisados para curar pessoas e prever o futuro. No Egito Antigo, os sonhos eram vistos como intervenções e advertências divinas.

O caso do americano que esteve em coma e voltou falando um idioma que jamais havia tido contato, é explicado como xenoglossia. O termo foi proposto pelo francês Charles Richet, professor, escritor, médico, pesquisador de fenômenos psíquicos, criador da Metafísica e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 1913.

Xenoglossia (do grego xen(o) = estranho, estrangeiro + gloss(o) = língua) consiste no falar, de forma espontânea, em língua ou línguas, que não foram previamente aprendidas.

Para o espiritismo, a xenoglossia é catalogada como uma das mais fortes evidências da sobrevivência da alma pós-morte, confirmando assim, a existência da reencarnação. Tal manifestação pode ser resultado de um processo anímico ou mediúnico. Allan Kardec, conhecido por codificar, sistematizar e propagar a Doutrina Espírita por meio do “Livro dos Espíritos” em 1857, classificou de médium poliglota aquele que possui essa capacidade.

Para os cristãos, os sonhos podem ser mensagens divinas. Essa experiência é comum com personagens bíblicos. Mas ainda hoje são recebidas como mensagens que revelam a “linguagem de Deus”. Os sonhos são repletos de significado para a vida. Não só mostram como estamos e que passos devemos tomar no caminho do amadurecimento e transformação, mas também podem apontar nossa consciência interior e tornar-se lugar de experiências profundas.

A Parapsicologia explica que os sonhos nos trazem mensagens do Passado, Presente e Futuro. Eles podem ser avisos para que possamos tomar providências a tempo, podem ser premonições nos guiando pelo caminho certo, ou viagens ao passado para que possamos entender o presente. O parapsicólogo britânico Keith Hearne demonstrou na década de 1970 que alguém em estado de sonho lúcido poderia fazer movimentos oculares deliberados, e estudos adicionais de Stephen LaBerge, da Universidade de Stanford, mostraram que a atividade cerebral durante um sonho lúcido é diferente da de um sonho “comum”.

Diz a lenda que a rainha Maya, mãe de Sidarta Gautama, o Buda, sonhou com um elefante branco com seis presas descendo dos céus, e adentrou em seu ventre. Ao acordar, a rainha contou o sonho ao rei, que convocou sábios para decifrar o significado daquele estranho sonho. E a profecia dizia que o filho da rainha seria um grande líder. Seu caminho seria tornar-se um poderoso e grande mestre espiritual.

Em uma de suas entrevistas, Paul McCartney conta ter sonhado com sua mãe, que faleceu quando ele tinha 14 anos. Ela apareceu para lhe dar uma mensagem que dizia “deixe estar”. E assim surgia a inspiração para escrever o sucesso “Let it be”.

Aprender um novo idioma é mais do que estudar o vocabulário e a gramática de uma língua. Uma pessoa não aprende um idioma apenas por aprender. Sempre há uma razão entrelaçada, um desejo mais profundo que inspira buscar um aprendizado. Aprender para realizar sonhos! Um novo idioma une pessoas e culturas, conduz viagens a países que despertam interesse, possibilita conversas, realização de tarefas, ajuda a compreender e ser compreendido. Neste caso, sonhar em outra língua pode ser então, uma expressão de desejo de pertencimento linguístico e cultural, ouvindo e seguindo um Chamado, aproveitando o sentimento de realização e satisfação pessoal, que só uma nova língua pode proporcionar.

Exemplos que nos convidam a fazer uma reflexão individual e desenvolver nossa própria interpretação de nossos sonhos, dependendo de nossas crenças, convicções e conhecimento, baseados em como interpretamos a nossa Realidade: Em qual idioma você sonha? E qual teoria melhor se encaixa à sua Percepção?

FONTE DE PESQUISA

Livro: Seminários sobre análise de sonhos — Carl Gustav Jung

Livro: A Interpretação dos Sonhos — Sigmund Freud

Livro: Sonhos: Viagens à Alma — Eurípedes Kuhl

brain.harvard.edu

www.psychologytoday.com/us

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Kátia Brunetti
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Written by Kátia Brunetti

Proprietária itanaliafranco, Educadora, Professora, Tradutora e Intérprete, Escritora, Palestrante, Coach, TerapeutaHolística ENGLISH/ESPAÑOL @ katiabrunetti2

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